A história dos cuidados dirigidos à pessoas que usam álcool e outras drogas não é exatamente um mar de rosas. Quando os leprosários foram restaurados para atender às necessidades da "grande internação" descrita por Foucault em "A História da Loucura", o lugar para os bêbados de rua não estava propriamente reservado, mas foi-se constituindo rapidamente, e justamente a partir deste processo. Virgínia Berridge, historiadora que se dedica a uma história das ideias relacionadas ao tratamento de usuários de drogas, diz que a "adicção" foi inventada em fins do século XVII e início do século XVIII. O Iluminismo? Este trouxe ao campo dos cuidados uma profunda mudança... retórica! Mas, do ponto de vista dos próprios usuários, pouca coisa mudou: a assistência era muito mais uma coisa à qual eles eram submetidos, do que um direito propriamente dito.

Muita água passou por debaixo da ponte até que algumas vozes pudessem ser erguidas para dizer: "Ei, tem alguma coisa errada aí...". No Brasil, por exemplo, não bastou que o artigo 196 da Constituição Federal nos dissesse que "saúde é um direito de todos e dever do Estado", para que se tornasse óbvio que a saúde é um direito, e não um conjunto de procedimentos passíveis de serem impostos aos sujeitos. Foi preciso o advento da Aids - menos como evento biológico, mais como fenômeno político e cultural - para que se começasse a discutir que havia mais o que fazer do que simplesmente encarcerar no hospício, na prisão, ou em clínicas especializadas (no caso dos mais abastados).

Foi no âmbito das políticas de enfrentamento à epidemia de HIV/Aids que se constituiu, com força política, o movimento social de Redução de Danos. Mais do que um conjunto de estratégias preventivas, a Redução de Danos serviu como "dobra" e "linha de fuga". Dobra, porque talvez tenha sido a primeira vez em que dispositivos de saúde foram constituídos COM usuários de drogas, e não PARA eles (ou mais: SOBRE eles). Eis que uma política de saúde pública operava não como dispositivo de disciplinamento e controle, mas como linha de fuga, permitindo operar a reflexão sobre o cuidado a partir de lógicas muito próximas daquilo que Foucault chamaria de "tecnologias de si", e que os gregos chamariam de "dietética".

Agora, anunciam-se tempos trevosos... Simultânea à impressionante novidade representada pelos milhares de usuários de drogas que têm ganho as ruas em manifestações que exigem a legalização e regulamentação das relações de produção, circulação e consumo de maconha, vemos a irrupção de diversas iniciativas que representam o que há de mais conservador em se tratando deste tema. Em nível federal, o governo anuncia a abertura de milhares de leitos de longa duração para internação de usuários de drogas em Comunidades Terapêuticas, numa atualização perversa do modelo preconizado por Phillipe Pinel em seu "Tratado Médico-Filosófico"; concomitante à isto, o Ministério da Saúde anuncia uma ampla revisão de sua política de Saúde Mental, o que pode redundar em fechamento de CAPS, incluindo aí os "ad"; por fim, vemos o Governo do Estado do Rio de Janeiro colocar nas ruas algo próximo às antigas e famigeradas "carrocinhas de cachorro", para recolher usuários de crack em situação de rua, ao mesmo tempo em que o deputado gaúcho Osmar Terra faz passar, em primeira instância, seu projeto que pretende "flexibilizar" (eita palavra maldita em nossos tempos...) os requisitos necessários para internação compulsória de usuários de drogas. Se o seu projeto for aprovado, bastará o pedido de um médico para que o procedimento de internar uma pessoa contra sua própria vontade seja levado à cabo.

Coincidência que tudo isto ocorre poucos meses antes da Copa do Mundo? A história recente nos mostra que o Brasil sempre se esforça para esconder seus miseráveis dos visitantes estrangeiros... Macacos me mordam se isto não está na mente de muitos legisladores e gestores...

"Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática" (Franco Basaglia).

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