Semana passada estive em Betim, ministrando a aula de abertura do Centro de Referência em Crack e Outras Drogas da UFMG. Ali, pude desenvolver com um pouco mais de consistência um raciocínio que tenho tentado construir, acerca da articulação de 4 elementos que considero extremamente importantes na análise da conjuntura em termos de políticas de drogas: 1. Campanhas de prevenção ao crack; 2. A "epidemia do crack"; 3. Comunidades terapêuticas; 4. Internações conulsórias.

1. Campanhas de prevenção ao crack

Para quem tem compartilhado comigo os estudos que fiz ao longo do meu mestrado recém concluído, nada de novo. O fato é que entendo o atual modelo de campanhas de prevenção ao crack com que temos operado como parte do problema, e não da solução. Este modelo de "pedagogia do horror" tem transmitido a ideia de que os usuários de crack são zumbis, mortos vivos extremamente perigosos, capazes de prejudicar às pessoas que os amam. Os modelos que representam os usuários nestas campanhas, despertam sensações que vão do medo ao nojo. Parecem saídos de filmes de terror tipo "B".

2. "Epidemia do crack"

"Epidemia" é um conceito teórico, e os conceitos, sabe-se, são formas de ver. De acordo com o modo como vemos, agimos. Nossas ações diante de uma determinada situação têm tudo a ver com o modo como a vemos. O conceito de "epidemia" é uma ferramenta de trabalho preciosa para o planejamento e a gestão em Saúde Coletiva. Porém, pode-se falar de "epidemia" quando nos referimos a um comportamento? Associada à ideia de que os usuários de crack são mortos-vivos, a noção de "epidemia do crack" é fértil em informar à sociedade de que vivemos uma epidemia de zumbis. Além disto, uma epidemia é um fenômenos com início, meio e fim, que exige investimento do Estado ate que o problema se estabilize. Ou seja: assim que a "epidemia do crack" passar, seria possível retirar os investimentos que estão sendo ampliados agora (sem nenhum critério, diga-se de passagem). Eis o que se produz com a recente mudança na nomenclatura das políticas, que deixam de falar em "álcool e outras drogas" (o que apontaria para uma necessária ampliação de recursos, em caráter permanente), para falar em "crack e outras drogas" (indicando que estes recursos poderiam ser realocados, assim que cesse a epidemia).

3. Comunidades terapêuticas

Diante de uma "epidemia de zumbis", há que se mobilizar todos os recursos, "em defesa da sociedade" para citar o nome de um famoso curso que Foucault ministrou nos anos 70, em Paris, justamente para dar conta das políticas de controle da vida promovidas na modernidade, para retirar do convívio social àqueles considerados como perigosos. Neste sentido, constituem-se políticas que têm por objetivo não cuidar de quem se acolhe, mas proteger às pessoas que ficaram do lado de fora (seja dos hospícios, dos leprosários ou das comunidades terapêuticas). Num contexto em que o campo de Saúde Mental Coletiva se recusa a operar conforme lógicas exigidas pola Justiça Criminal e pela "opinião publicada", a sociedade reclama a participação de novas instâncias que dêem conta do recado. As comunidades terapêuticas - mesmo as boas - são chamadas cumprir este papel, que dele gostem, ou não. Como se não bastasse, uma nova portaria da ANVISA diz que não é mais necessário ser profissional de saúde para coordenar CT's: basta ter curso superior. Atenção, maestros de fanfarra recentemente formados pela UFPB: vocês podem ser coordenadores de Comunidades Terapêuticas.

4. Internações compulsórias

Se os usuários de crack são apresentados como monstros, e se a noção de epidemia amplia esta presença monstruosa aos milhões, não bastará a abertura de vagas nos "leprosários do século XXI", que foi a definição dada às comunidades terapêuticas por um religioso que se dedica ao trabalho em uma destas instituições. Afinal, é fácil escapar às CT's, sendo que a maioria delas exige voluntariedade da parte do interno em recuperação. Sendo assim, será preciso reativar os mais anacrônicos processos de controle dos corpos, constituindo-se verdadeiras "corrocinhas de drogados", numa alusão às clássicas "carrocinhas de cachorros". Em Rio e São Paulo, já é possível ver cenas dantescas, em que agentes sociais perseguem moradores de rua e outros indesejáveis. No congresso nacional, o deputado gaúcho Osmar Terra apresentou projeto de lei para flexibilizar as normas que hoje regulam este tipo de prática, restrita aos casos em que há risco de vida do próprio usuário, ou de terceiros.

5. Mas, o que falta?

Será que falta algo pra entendermos melhor a articulação que proponho aqui? É certo que ela é arbitrária, e não contempla todos os elementos presentes para esta reflexão. Mas, a partir destes quatro tópicos, pontuo: tudo isto ocorre em tempos de preparação para Copa do Mundo, e durante um Governo Federal que é escravo de suas alianças com os setores mais reacionários do pensamento cristão contemporâneo.

Amanhã, participarei de uma mesa na reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental. Não pretendo apresentar uma fala como esta que fiz em Betim... Mas minhas preocupações têm passado por aí.

Marcadores , , , , , , , Bookmark the rel='bookmark'>permalink.

Um comentário:

Anatize disse...

Participei da aula inaugural e sua fala me fez pesquisar muito a partir de então.Obrigada por ter me deixado inquieta.