Em nosso primeiro fim de semana depois da mudança para o Rio de Janeiro, eu e Flávia fomos passar um domingo em Santa Teresa. Depois de uma bela feijoada no Marcô, regada a bossa-jazz da melhor qualidade, fomos tomar um café no Largo das Letras.

Foi ali que encontrei o livro "Cocaína: literatura e outras companheiras de ilusão". Organizado e apresentado por Beatriz Resende, com prefácio de Luis Eduardo Sares, o livro é uma coletânea de textos sobre drogas produzidos no Rio de Janeiro, entre os anos de 1894 até 1933. São crônicas, trechos de romances, poemas e letras de canções, que remontam de modo especial a Belle Époque carioca, com toda a influência de costumes franceses sobre uma burguesia emergente. Estão ali os cabarés da Lapa e da Glória, os casarões do Catete, as internações para desintoxicação em São Paulo e Minas Gerais...

Transcrevo abaixo um dos melhores momentos do livro, um fragmento do romance "Enervadas", de Madame Chrysanthème, pseudônimo de Cecília Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos, peça absolutamente rara, dificilmente encontrado em sebos ou bibliotecas. 

Segundo Beatriz Resende, o silêncio em torno destes textos deve-se não apenas ao fato de que uma nova moralidade emergente condenava os "vícios elegantes", mas também em decorrência da força do movimento modernista, com seu investimento na busca e construção de uma "alma nacional", diante do qual os estrangeirismos estéticos das primeiras décadas do século XX quase que desapareceram da memória nacional.

Sem mais, um trecho de "Enervadas":

"Delicadamente, ele me retirou a seringa de Pravaz, o vidro da morfina e modificou meu modo de encarar as cenas do mundo. Foi a seu pedido que chamei o delicioso Maceu Pedrosa e que me deixei examinar por ele. Eu estou mentindo. Ele não me rogou exatamente que chamasse este perfumado sacerdote de doenças femininas: ele aconselhou chamasse o sério e arguto dr. Armando Lins, profissional de moléstias nervosas. Mas esse Armando Lins é tão feio e o outro é tão bonito que não hesitei. Aliás, Roberto está em S. Paulo há uma semana e ignora que eu o tenha feito. No isolamento da minha casa, sem a presença dele e sobretudo muito fraca de corpo e inquieta d'alma, eu principiei a traçar essas linhas que lhe explicarão melhor quem eu sou, se eu morrer, e que infelizmente provarão ao meu suave e elegante médico que ele tem razão. Eu sou uma enervada, quero dizer, uma criatura sem vontade própria, joguete das suas sensações, incapaz de realmente sentir, sem objetivos e sem ideias, e de corpo e alma doentes, que lhe servem falsos anseios e lhe indicam falsos caminhos. Enfim, ente prejudicial a si próprio e aos outros."

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